segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Rossana Honorato

A paisagem recontada


A experiência que passa de boca em boca é a fonte da qual beberam todos os narradores.
Walter Benjamin


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De novo ela: a orla. A onda que me faz deslizar na praia de O Sebo Cultural para uma pequena narrativa.
Marca indelével na paisagem da cidade é objeto constante de controvérsias mediante cuidados e atropelos, coletivos e individuais, públicos e particulares, repercutidos após se tê-la alçado da condição de norma municipal a tratamento constitucional no estado da Paraíba.
Uma questão talvez tenha escapado a uma maior especulação da curiosidade comum: que circunstâncias, de fato, teriam rondado a motivação governamental da época para a decisão?
O proveito de conversa recente com uma das melhores fontes orais de informação do estado da Paraíba encheu-me de surpresa. Das fontes de que bebi – e a caminhada justifica a pouquidão –, não saboreei o precioso líquido com que convido agora a um brinde em memória da cidade, partilhando uma, ao menos para mim, novidade propícia à construção coletiva de um novo método e permanente tema para o debate público.
Curiosa, dele aproximei-me e indaguei-o: o que de fato incitara João Agripino, em 1968, à promoção constitucional de uma normativa urbana; conhecedora de antemão do que dão conta outras fontes orais e acadêmicas, que a prerrogativa da carta magna decorrera de pressões que sofrera o governador de segmentos da sociedade. Alguns, dizem-nas provenientes da imprensa da época. Outros, de representações sociais já balizadas com o equilíbrio ambiental-paisagístico...
A resultante posterior, já em 1970, se sabe através da inserção de uma emenda constitucional modificativa: a inviabilidade da concessão pública de licença para construção de prédios com mais de dois pavimentos na orla, determinando à primeira via o controle do gabarito de altura.
Se atentarmos para o gabarito de altura acima, não dá pra deixar de lembrar que, em anos precedentes – em 1971 o equipamento era inaugurado –, encontrava-se a obra do Hotel Tambaú em plena execução e seu autor, o arquiteto carioca Sérgio Bernardes, em constantes andanças por terras paraibanas acompanhando a sua invenção virar realidade, que se impõe magistral até os nossos dias. Obra pública estadual, somente depois vendida à Rede Tropical de Hotéis, provinha de iniciativa governamental e o intuito era a promoção do turismo na orla da capital para guarnecê-la de equipamento adequado para acolher, sobretudo, autoridades públicas brasileiras que por aqui passavam.
Autor de ao menos três obras em João Pessoa: ainda o Espaço Cultural e uma residência na Avenida Cairu, no bairro do Cabo Branco; o arquiteto, formado em 1948 na Faculdade Nacional de Arquitetura, deixou um acervo arquitetônico de projeção internacional. O emprego de materiais novos ou inovações na aplicação dos existentes chamaram atenção à sua produção pela originalidade e plasticidade material.
Uma breve digressão me permite recordar: era 1982 e estávamos nós, 40 alunos da Escola de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba, terceiro ou quarto período de graduação – parte deles, hoje, numa amorosa labuta profissional –, guiados por Sérgio Bernardes na obra do Espaço Cultural prestes a inaugurar-se. Testemunhei o seu enlevo com a própria criação. Por todos os ambientes por que passávamos, parava a cada invenção pondo em evidência detalhes da concepção projetual executada. Outra controvertida produção sua na cidade, pela decisão oficial e pela inviabilidade de algumas resoluções técnicas ali empregadas.
Uma rápida visita em biografias do arquiteto na rede de comunicação virtual registra depoimentos acerca do vigoroso conceito que o arquiteto tinha da relação da cidade com o mar, suas declarações sobre a necessidade de a arquitetura tirar proveito da proximidade com o oceano, da fruição visual que a presença da água permite, já predizendo a necessidade de uma relação produtiva que descartasse a predação, a poluição da ambiência praiana e cultural, conforme se fazia e se faz ainda hoje no Brasil; talvez balizado pela experiência da orla de Copacabana e da maravilha de sua cidade natal.
Chama-nos à atenção, entretanto, o modo com que se permitiu tomar conta do belo areial que deu guarida a “seu” hotel e as tantas controvérsias que gerou sua ousadia sobre a brusca alteração da paisagem das redondezas de Tambaú. Marcante característica de sua atuação profissional – visões que se alargam no desconhecido do tempo – levou o arquiteto a empreitar a escala de seu projeto como a referência de dominância da paisagem circunvizinha à sua obra; talvez assim justificando-se a ascendência que decerto desfrutou sobre o governador acerca do limite constitucional da altura das construções da orla. Uma perspectiva higienizadora para o entorno do Hotel Tambaú enalteceria assim a estética da paisagem natural sobre a paisagem construída.
Contradição do arquiteto? Proeza de artista? Conquista social por derradeiro? Ante a visão de ao menos quatro edifícios residenciais que, àquela data, já se viam construídos com altura acima de dois pavimentos entre os bairros de Tambaú e Cabo Branco: o Santo Antônio (que já se avista na foto abaixo) em Tambaú, e o Borborema, o Beira-Mar e o João Marques de Almeida, no Cabo Branco.


Vista aérea da orla de Tambaú antes da implantação do Hotel Tambaú. Nela, em destaque, o Edifício residencial Santo Antônio, construído em torno de 1959.Foto do Acervo Humberto Nóbrega do Centro Universitário João Pessoa – UNIPÊ. Arquivo eletrônico cedido pela arquiteta Wylnna Vidal.


Depoimento que enche a história de curiosidade e os meus ouvidos do prazer por recebê-lo do engenheiro urbanista Antônio Augusto de Almeida, em meados deste 2007. E antes que se dissipe um potencial debate acerca da verticalização da orla da cidade, na atualidade, não restrinjo a minha defesa à imperiosa conservação da normativa constitucional às praias urbanas da capital paraibana, estendo-a a uma oportuna demanda social, legítima em meu ver, pela revisão da legislação para uma apreciação das especificidades da orla estadual, em vista de aspectos que este artigo apenas fustiga; que nem negligencie a lógica da socioeconomia urbana tampouco a sustentabilidade ambiental e cultural da paisagem.


Vista aérea da orla de Tambaú após a implantação do Hotel Tambaú (janeiro de 2002) - Foto: Dirceu Tortorello.


Rossana Honorato é arquiteta e urbanista, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB e Coordenadora de implantação do Sistema de Ouvidoria Municipal da Prefeitura de João Pessoa - Gestão 2005-2008.

Nota: registra a fonte
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/ que Sérgio Bernardes “ganhou o Prêmio Internacional de Arte Sacra, em Darmstadt, na Alemanha, pelo projeto da igreja de São Domingos, em São Paulo (1952), o Prêmio Internacional de Habitação da II Bienal de São Paulo (1953) e o de habitação individual na Trienal de Veneza (1954). O sucesso no exterior continuou com a conquista da estrela de ouro pelo projeto do pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Bruxelas (1958). Criou o plano-diretor para as favelas cariocas (1960) e vários outros projetos importantes como o Hotel Tambaú, em João Pessoa, PB, o plano de integração de Salvador e do Recôncavo baiano e, em Brasília, a rede hospitalar, o hotel do lago e o mastro da bandeira nacional, na praça dos Três Poderes.”

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