segunda-feira, 28 de julho de 2008

Morre Joaquim Guedes

Presidente licenciado do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil), Joaquim Manoel Guedes Sobrinho, 76, morreu atropelado neste domingo (27) em frente ao apartamento dele, na avenida 9 de Julho, zona sul de São Paulo. Segundo a polícia, ele atravessava a avenida em um trecho pouco iluminado, na altura do número 4782, próximo a rua Groenlândia, por volta das 20h. O veículo envolvido no acidente não foi identificado. Joaquim Guedes havia pedido afastamento do instituto pouco mais de um mês atrás, porque pretendia concorrer a uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. (Folha Online).

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arquiteto joaquim guedes, são paulo, brasil
Haifa Yazigi Sabbag¹

Figura fascinante, espírito altamente crítico, com idéias muito objetivas e racionais sobre o ato de projetar – para ele “a arte de construir” – Joaquim Guedes não se desvia de seus preceitos, ao contrário, reafirma cada vez mais sua particular visão da arquitetura. Ao se defrontar com as questões do conhecimento, da relação entre as regras e a razão, da ética com a estética, das possibilidades infinitas do saber aplicado, insiste na construção de projetos com disciplina e com austeridade. Porque, reitera, construção é tudo, é magia, atende necessidades do presente, cria linguagens. Explica mais: é todo um processo de pensar, passando por gestos mínimos que completam os procedimentos e seus objetivos. Enfim, é “razão carregada de emoção”.
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Guedes não fala em beleza, “não sabe o que é”. No seu entender, o conhecimento é que leva a coisas justas, elegantes, apoiadas numa lógica própria, tão rigorosa quanto o saber fazer. Ao ser indagado sobre o que então diferencia a arquitetura da construção, responde com as palavras de Argan: ”tudo o que concerne à construção é arquitetura”.
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Convidado para participar da Comissão Científica da UIA para o congresso de arquitetura em Berlim, em 2002, escolhendo temas e nomes dos participantes, (foi o único americano entre os 12 membros selecionados) não falou o esperado: ética, estética, sociologia ou design. Surpreendendo a comissão, repetiu o que sempre afirmou: o mais importante na arquitetura é a construção. Porque gera a vida social, a relação de produção, atende às necessidades humanas, à vida cotidiana.
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O racionalismo construtivo que orientou os arquitetos paulistas em direção às soluções estruturais em concreto aparente a partir da década de 50, teve em Guedes uma ressonância particular. Pesquisador intransigente, suas estruturas já eram determinadas pela razão, pelo espaço a ser criado. “São as necessidades e os recursos que vão defini-las”. Abordagem que o aproxima de Alvar Aalto, sua maior admiração. No entanto, faz a observação: uma construção mais rigorosa pode levar a pesquisas e tecnologias mais avançadas. Verbete em várias enciclopédias, recentemente o Dictionary of Architecture (1999) da Oxford University Press, caracteriza o arquiteto como defensor de uma arquitetura que atende mais ao clima e à realidade citando como exemplo a cidade de Caraíba, na Bahia.
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Joaquim Guedes iniciou a vida acadêmica lecionado na cadeira de Materiais e Técnicas, na FAU/USP onde se formou. Fascinado então pelo concreto armado, cita a casa Cunha Lima de 1958, primeira obra em que empregou o material e na qual a estrutura define completamente a arquitetura. A passagem para outros materiais se deu em razão da constatação de que o concreto absorve muita luz e calor e se conserva mal. “Sou muito livre em relação ao material”. Na casa para Anna Mariani, em Ibiúna, o tijolo predomina embora a estrutura em concreto permaneça aparente; nela, tijolos e outras soluções remetem a Alvar Aalto.
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Uma profunda amizade uniu Guedes a Vilanova Artigas, o grande mentor da arquitetura paulista. O respeito que sentia pelo mestre, “um homem íntegro” e os caminhos pela política em que se envolveram os jovens arquitetos daquela geração, dos quais ele participou intensamente mas não gosta de falar (esteve na China com a missão oficial em 63; em Cuba, no XI Congresso de Arquitetura; deu aulas em Strasburgo na França; compareceu a reuniões pelo mundo todo), não impediu um longo afastamento entre ambos. O reencontro se deu no final da histórica aula que Artigas proferiu na FAU ao ser readmitido, pouco antes de falecer. Ainda com muita emoção, Guedes conta que Artigas lhe confessou na ocasião ter sido bastante influenciado por ele. A posição independente que Guedes mantém em relação à política que rege até hoje a FAU/USP, fato já célebre, foi comparada pelo professor Antônio Carlos Sant’Anna à atitude firme de Rino Levi nessa questão, durante apresentação do livro sobre o arquiteto ítalo-brasileiro, em outubro, na FIESP.
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O ensino, para Guedes, merece um capítulo à parte. Tem idéias particulares, uma longa prática e muito para falar. Apenas como ilustração, no prefácio do livro “Eupalinos ou o Arquiteto”, de Paul Valéry, escrito por ele em 1995, faz uma indagação: como formar arquitetos para o novo milênio? “Faculdades de Arquitetura não diferem muito das velhas Escolas de Belas Artes; parecem não saber atualizar o ensino da construção, coisa de engenheiro. Estimulam exercícios fantasiosos, falsas mega-estruturas, indiferentes à natureza dos problemas propostos, exageradas, insolúveis ou absurdas; exercícios que excluem o aprendizado da paisagem e dos fatores econômicos e sociais e maltratam as técnicas em sua natureza e em seu papel enquanto cultura.”
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A experiência construtiva e a autonomia conceitual e formal de Guedes resultam em espaços dimensionados para o uso cotidiano, seja qual for o programa. Torna-se intransigente em relação a estruturas mal empregadas ou enganosas, em exibicionismos sem sentido. Niemeyer, Lelé (João Filgueiras Lima) não são poupados. Nem Mies Van der Rohe. “Ele falseava as estruturas”. No pavilhão da Alemanha para a Feira Internacional de Barcelona (1925) “pilares esbeltos são oferecidos como estruturas que sustentam o prédio. Não são. Os planos de mármore é que são responsáveis pelo travamento da estrutura”.
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A grande atração do arquiteto pelas questões urbanas advém da forte influência que recebeu, ainda estudante, do padre Louis Lebret, dominicano francês radicado no Brasil, autor de um trabalho interativo de planejamento urbano voltado para o social. “Devo ao mestre Lebret, com quem estudei sociologia e política, a descoberta da relação das formas com a vida social e econômica”. Essa influência fez e ainda faz com que Guedes sinta a cidade como um organismo vivo. “Ela se desenvolve a partir de conflitos e de forças que a compõem ou de fatores que interferem na vida do habitante”. Lembra então que as cidades são o lugar de maior acumulação de cultura.
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Guedes planejou cidades novas e fez planos diretores para cidades em expansão. Em 1956, com apenas 24 anos, concorreu ao concurso para o Plano Piloto de Brasília, ignorando a Carta de Atenas, cujas diretrizes foram logo superadas. Na década de 70, projetou Carajás, Marabá, Barcarena, todas no Pará, e Caraíba, na Bahia, programadas para durar enquanto a mineração existisse. Caraíba é um raro exemplo. Pensada para a sociedade que nela “ia viver e como viver”, compõe-se de um conjunto de praças, uma área de habitações – casas alinhadas paralelamente às ruas, geminadas e sem recuo, para melhor proteção contra o sol, edifícios com espaços protegidos para os pedestres. “Uma arquitetura mais atenta ao clima e à realidade econômica”, resume Stevens Curl no Dictionary of Architecture. Participou também de vários concursos internacionais. A recuperação urbana de Bicocca, uma área industrial ao norte de Milão, Itália, exigiu um exercício de reflexão sobre novos sistemas para áreas desocupadas das grandes cidades. Guedes apresentou uma proposta urbanística composta de uma malha viária ortogonal que organizava volumes de arquitetura livre. Para o Centro Cultural de Lisboa, em 1988, ele optou por um trabalho mais de idéias - como “encontrar uma alma para um corpo complexo”. No tecido urbano em que vários fragmentos se interpõem propôs o reencontro dos espaços e significados, “pela reflexão sobre atividades e comportamentos sociais abrangidos, a história diante da nova realidade”. Sem negar a razão, nem adotar soluções radicalmente intuitivas ou subjetivas, apenas procurou ampliar os campos da imaginação”, escreveu no memorial.
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Nascido numa família numerosa de 15 filhos, “minha sorte na vida foi ter de me confrontar com a necessidade desde cedo”, é pai de cinco filhos, tem amigos no mundo todo, quase uma centena de arquitetos passaram pelo seu escritório. Recebeu inúmeros prêmios, inúmeros convites para proferir palestras. Mas Guedes confessa que às vezes se sente muito só. Talvez porque sempre esteve à frente de seu tempo e suas idéias avançadas não tenham encontrado o justo som.
Fonte:
http://www.vitruvius.com.br/ac/ac008/ac008_1.asp
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1 Haifa Yazigi Sabbag é jornalista especializada em arquitetura, foi editora da revista AU e edita a seção Arquitetura e Crítica do site Vitruvius.

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