quarta-feira, 9 de março de 2011

Um recorte sobre Chacel

Fernando Chacel
"Não planejei ser paisagista. As coisas acabaram acontecendo na minha vida e, de repente, me associei a um botânico muito importante".


Fernando Chacel formou-se em 1953 na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Entre 1952 e 1953 foi estagiário de Roberto Burle Marx, a quem atribui seu interesse pelo paisagismo. “O fascínio pela arte de Burle Marx, por suas cores, foi algo que me emocionou muito e me revelou um caminho no qual não havia pensado”, diz ele. O que mais chama a atenção no trabalho de Chacel não é o paisagismo de pequeno porte, as formas, volumes ou o conhecimento sobre espécies e materiais, mas o domínio da paisagem de grandes glebas, a recuperação ambiental de áreas de porte elevado. Nesse contexto, seu trabalho mais conhecido é o conjunto de projetos na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, como os parques Professor Mello Barreto e Fazenda da Restinga. E Chacel diz ainda que há muito a fazer por lá, principalmente na porção oeste. “É muita área”, ele relata. Nos intervalos do 3º Seminário Internacional de Paisagismo, realizado no início de junho, no Senac/São Paulo, Chacel concedeu esta entrevista a PROJETO DESIGN.

Distante das discussões sobre tendências ou mercado, Fernando Chacel é considerado, atualmente, o mais importante paisagista brasileiro. Ele acaba de ganhar uma honraria internacional, que, em suas palavras, é “um reconhecimento da Fundação Dembarton Oaks, de Washington”, instituição ligada à Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Como surgiu seu interesse pelo paisagismo?
Minha formação primeira foi a de arquiteto. Meu interesse pelo paisagismo surgiu exatamente quando fui trabalhar no escritório de Roberto Burle Marx, onde fui estagiário entre 1952 e 1953. Mas, na realidade, não fui trabalhar com paisagismo: fiquei encarregado de uma exposição que ele faria em Washington, nos Estados Unidos, e eu pintava os desenhos que ele iria expor. Foi quando conheci seu lado artístico.

Esse fascínio pela arte de Roberto Burle Marx, por suas cores, foi algo que me emocionou muito e me revelou um caminho no qual não havia pensado. Posteriormente, fui trabalhar na prefeitura, no setor de paisagismo, como uma pessoa que havia trabalhado no escritório de Burle Marx. Então, eu era visto como um paisagista e me deram uma praça para fazer.

E o senhor fez?
É uma história curiosa. Realmente eu não sabia o que fazer, nunca fizera uma praça na minha vida. Eu ainda tinha laços com Burle Marx e, então, fui ao arquivo dele, peguei uns dois ou três desenhos de situações semelhantes e, mais ou menos, fiz uma espécie de colagem. Para fazer os desenhos, deu certo. Utilizei a pedra portuguesa, aquelas formas amebóides. Na parte de vegetação fui procurar o mestre de jardim de Burle Marx, para que ele me explicasse o que era aquilo que eu via nos desenhos, aquela determinada planta, e comecei a entender os projetos.

Criei um produto final. Fiz um desenho a guache, técnica com a qual eu estava bastante sintonizado, e a impressão de meus colegas da repartição pública foi a de que se tratava realmente de um discípulo de Burle Marx. Ele nunca soube disso.

E essa praça foi executada?
Não, graças a Deus. Mas essa foi a minha primeira experiência profissional na área do paisagismo. Veja, eu não planejei ser paisagista. As coisas acabaram acontecendo na minha vida e, de repente, me associei a um botânico muito importante, Luiz Emygdio de Mello Filho. Posso dizer que ele foi a pessoa mais importante na minha formação. Na ocasião, fechamos um contrato com a Central Hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais, para fazer uma série de trabalhos na barragem de Furnas. Foi quando comecei a entrar em outra área, embora com o raciocínio ainda muito ligado à idéia de jardim. Os trabalhos de Furnas também foram vistos por Lucas Nogueira Garcez, da Cesp [Companhia Energética de São Paulo]. Ele gostou e me convidou para trabalhar na Cesp. Então eu trabalhei três anos para Furnas e dez anos para a Cesp.

Que tipo de trabalho?
Foi na Cesp que realmente houve a grande virada de meu trabalho de jardinismo para algo mais ambiental. E foi exatamente na barragem de Paraibuna, em São Paulo, que tive a primeira experiência no sentido de recuperação de uma área degradada, de restauração paisagística. Já havia a visão de se fazer alguma coisa para recriar, com plantas nativas, algo que se assemelhasse ao ecossistema original.

Ainda não existia, contudo, esse conceito de ecogênese tão forte. Em Paraibuna, trabalhei também com um dos nossos grandes ambientalistas, que é Aziz Ab’Saber. Aprendi muito com ele. Nós realmente começamos a fazer um trabalho de produção de mudas, o que foi uma espécie de embrião para obras que se desenvolveram depois, com uma série de pessoas do setor ambiental, como agrônomos e engenheiros florestais. Esse foi o primeiro trabalho sistemático nessa linha de pensamento.
Nesse contexto, o senhor considera o trabalho de Burle Marx mais de paisagismo ou ambiental?
O paisagismo também é ambiental. Hoje mostrei [no seminário] projetos que ele fez com biólogos, como os que elaborou para as lagoas [Grupo Biológico das Lagoas, no Rio de Janeiro], que são trabalhos ainda em voga. Embora não executados, são ecogenéticos. Não foram realizados porque não era o momento, sobretudo porque não havia pressão de lei.

Em entrevista para PROJETO DESIGN, Rosa Kliass afirmou haver no Brasil duas correntes paisagísticas: uma de Roberto Burle Marx, a outra de Roberto Coelho Cardoso. O senhor concorda com essa visão dos dois Robertos?
Concordo, embora os dois tenham atuado de formas muito diferentes, com influências diversas. Roberto Coelho Cardoso vem de uma escola californiana. Apesar de seu nome português, ele era filho de americano. Cardoso prestou um grande serviço porque tinha uma cátedra, era professor de paisagismo. Ele influenciou toda uma geração de alunos, o que foi um trabalho muito positivo. Mas, como paisagista, eu não compararia Roberto Cardoso com a arte de Burle Marx.

O que Burle Marx fez na área da botânica é insuperável. Mas que existem os dois Robertos, isso é verdade. Eu acho, contudo, que são escolas muito diferentes. Nunca vi em Roberto Coelho Cardoso o menor interesse pela ecologia; ao contrário, ele tinha um trabalho extremamente construtivista, que era muito diferente do de Burle Marx.

Há grandes diferenças de escala nos trabalhos que o senhor realiza, não?
Eu trabalho nas escalas mais variadas. Vou falar um pouco de meus escritórios. São dois pequenos escritórios, um em São Paulo, com meu sócio Sidney Linhares, e um no Rio de Janeiro.

Nós trabalhamos de forma complementar. A maioria dos nossos clientes, embora o escritório em São Paulo também tenha trabalhos muito grandes, está concentrada no Rio. Talvez por causa desses projetos na Barra da Tijuca, que abriram um grande campo de atuação para nós, sobretudo por responderem a problemas legislativos. Então, nesse sentido, nós somos muitas vezes chamados nos empreendimentos antes do arquiteto. Nós trabalhamos também no âmbito dos impactos ambientais, sempre no sentido de criar ecossistemas de compensação, de substituição.

Qual o porte dos escritórios?
São pequenos, e cada um deles tem, por coincidência, equipe formada por cinco membros. Mas temos o dobro disso em número de consultores externos, que pertencem, sobretudo, às áreas de agronomia, engenharia florestal e biologia.

Nosso trabalho, nas mais variadas escalas, é feito muito em cima disso. Eu acho que importante proje-tar em todas as escalas, e gosto muito de trabalhar na pequena dimensão, porque é aí que surge uma série de detalhes para os quais você não dá atenção na grande escala - embora mesmo nesta, quando se setorizam os compartimentos paisagísticos, passa-se da grande à pequena.

Com essa visão ecológica, o senhor não se incomoda de trabalhar com empreendimentos imobiliários?

Depende do empreendimento imobiliário. Há alguns deles com os quais prefiro não trabalhar. Hoje está difícil, porque a estética atual dos empreendimentos não é aquela que satisfaz meus sentimentos. Eu não posso concordar ou deixar de concordar. É muito complicado porque, na realidade, essa estética adotada por eles vende.

Dê algum exemplo de seus projetos de pequena escala.
Primeiro, uma série de residências. Depois, não tão de pequena escala assim, tenho praças públicas. Há uma em especial, que infelizmente hoje está degradada, mas que ficou muito boa, no Rio de Janeiro: a praça Antero de Quental. Ela foi destruída por falta de conservação.

O senhor falou, em sua apresentação no seminário, a respeito das diferenças entre Rio de Janeiro e São Paulo. Existem declarações polêmicas suas, dizendo que para São Paulo, em alguns casos, a solução é demolir.
Passa por isso. São Paulo já começou, na área da arquitetura, a demolir muita coisa. Eu fiz um projeto para o parque D. Pedro 2º, que infelizmente está com as obras paradas, no qual estavam previstas demolições. Sobre esse parque, acho que há uma coisa muito importante a destacar. Nele, tudo o que era tido como problema eu achei que representava soluções. Por exemplo, a presença de um terminal de ônibus, do metrô, do VLT [veículo leve sobre trilhos]. Esse é realmente o parque do povo, o parque do não-automóvel. Chega-se a ele por meio de transporte público e isso é muito importante. Qualquer um pode ir ao parque, utilizando ônibus, VLT ou metrô. E outra coisa: nós abrimos a estação do metrô para dentro do parque. Isso será possível quando a obra estiver pronta.

E como está o andamento das obras?
A obra está parada pela metade, parece que a firma vencedora da concorrência faliu. Também não tive nenhum contato durante a mudança de administração das prefeituras, mas acredito que os trabalhos serão retomados. E eu conto com isso porque quem está encarregado de retomar o processo é exatamente a pessoa que promoveu este seminário, que é Plínio de Toledo Piza Filho. Com ele, fizemos uma das margens daquela caixa que se chama rio Tamanduateí também. E fizemos a outra margem. Nesta nós idealizamos um grande trabalho de recuperação da área e criamos zonas de interesse para a coletividade, que é muito carente.

O senhor acabou de ganhar um prêmio internacional.
Na realidade, é um reconhecimento que veio de uma entidade muito importante, a Fundação Dembarton Oaks, de Washington, nos Estados Unidos. Ela trabalha com a Universidade Harvard. Há um setor que se ocupa de paisagismo na fundação, e que está preocupado em fazer, dentro do seu grande acervo, que inclui jardins dos séculos 17 a 19, também uma parte com projetos contemporâneos.

E qual é a idéia desse acervo de projetos contemporâneos?
Eles querem fazer um acervo relativamente pequeno, com projetos que consideram diferenciados. E eles demonstram esse reconhecimento exatamente com base nesses trabalhos de ecogênese. Eu tenho muitos trabalhos nesse sentido, o que não impede que eu continue a elaborar outras propostas também, mais tradicionais. Mas é um trabalho para o qual sou muito solicitado por causa da legislação. Há a obrigatoriedade de fazer esses projetos. O empresário ou o promotor de determinado plano de desenvolvimento tem obriga- ção de fazê-lo, porque do contrário ele não obtém licença para o empreendimento.

Ainda há muito que fazer na Barra da Tijuca?
Muito. Eu diria que a Barra Leste foi a da restituição, mas a Barra Oeste, da avenida Ayrton Senna, é a da reconstituição, da reconstrução da paisagem. E aí ainda há muito trabalho para fazer. É muita área.

O senhor está fazendo ainda, na Barra, a Cidade da Música? É uma parceria com o escritório do arquiteto francês Christian de Portzamparc?
Além de ele ser um arquiteto extraordinário, o trabalho dele é igualmente extraordinário. Portzamparc é uma pessoa de elevadas possibilidades, realmente muito especial. Porque é difícil um arquiteto ceder um projeto seu para uma parceria.

Portzamparc fez um trabalho em que havia pilotis. Normalmente, estes seriam idealizados pelo arquiteto, mas, como ele pediu que esses pilotis fizessem parte integrante do parque, passou a criação para mim. Isso é raríssimo entre os arquitetos. E não foi algo imposto. Ele está muito satisfeito com o resultado. É um trabalho muito bonito.

Está andando?
Sim, esteve um tempo parado, mas deve terminar por ocasião dos Jogos Pan-Americanos, em 2007. Ele ficará pronto, mas não aberto ao público. Nós fizemos um parque temático, que é exatamente uma espécie de restauração de todos os elementos da paisagem original da Barra da Tijuca, ou seja, da restinga e do manguezal.

O senhor acredita que exista no Brasil alguma cidade que seja mais avançada em termos de políticas ambientais?
O Rio de Janeiro está bastante avançado nesse aspecto, porque tem uma Secretaria de Meio Ambiente muito ativa e muito correta nas suas ações. Eles têm criado áreas de proteção ambiental às vezes dentro de um terreno, o que é muito raro, porque uma APA em geral atinge toda uma região.

No Rio existem APAs localizadas dentro de um simples terreno porque envolvem valores ecológicos. Um exemplo é a APA das Tabebuias. Essa área é grande, tem quase 600 mil metros quadrados, mas cerca de 200 mil estavam ocupados por um último fragmento de mata paludosa, que está em extinção na Barra da Tijuca. A Secretaria de Meio Ambiente achou por bem segurar esse último fragmento e criar ali uma área de proteção, de preservação, e deixar que fosse feito um desenvolvimento mais reduzido em termos de ocupação.

Por Evelise Grunow e Fernando Serapião
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 305 Julho de 2005

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